Lembrei que
tinha esse blog alguns dias atrás e estive em dúvida sobre voltar a escrever
nele ou abandoná-lo de vez, como todos os hobbies que não consigo cultivar por
mais de três meses. Só que faz seis anos desde a minha última publicação aqui
e, ao relê-la, percebi que estava enfrentando o mesmo sentimento que me fez
publicar minhas últimas palavras nesse diário virtual. Acontece que seis anos é
muito tempo e minha vida já mudou tanto desde meu último post, que me deixou
extremamente angustiada saber que, apesar de todas essas mudanças, cá estou eu,
com o mesmo sentimento de seis anos atrás. Meu primeiro pensamento foi
"como posso estar sentindo a mesma coisa que minha eu passada, sendo que
já mudei tanto desde então?". E então, outro pensamento me assombrou, o de
que, talvez, eu não tenha mudado tanto quanto achava.
Isso é assustador, não é? Porque mudar é
evoluir, ou regredir, mas permanecer o mesmo é quase antinatural. É aquela
famosa frase de Heráclito, sobre o homem não poder se banhar duas vezes no
mesmo rio. Por isso essa ideia logo passou de assustadora para ridícula, é
impossível eu não ter mudado. Não vou entrar no mérito de narrar tudo que
aconteceu comigo nesse tempo, mas de certo eu já me considero uma versão
diferente, ainda que não totalmente, da minha antiga eu. Cheguei então
em duas conclusões: 1) Eu tenho uma condição que se repete ciclicamente;
2) Quando ela aparece, sinto vontade de escrever (e procurar um lugar pra
escrever me fez encontrar esse lugar que eu já tinha).
Após essas duas revelações se apresentarem,
estive em profunda reflexão sobre minha vida no geral, minha história, minhas
memórias e tudo que me compõe. Tudo isso para tentar entender a causa dessa
sensação depressiva que me assola de tempos em tempos e por que ela não mudou
junto com tantos outros traços meus. Lembrei-me, então, do filme Divertidamente
da Pixar, uma animação que mostra como as nossas emoções funcionam no cérebro.
Nesse filme somos introduzidos a um conceito que os personagens chamam de
"memórias-base", elas são responsáveis por criar ilhas que moldam os
principais traços de personalidade de uma pessoa. Como uma das personagens do
filme diz, esses traços de personalidade são o que fazem alguém ser esse
alguém. Sabendo que o roteiro do filme foi construído junto com neurocientistas
e psicólogos, eu acredito que esse conceito das ilhas que sustentam nossa
personalidade realmente existe.
Isso me leva a outra memória, de alguns anos
atrás, em que a pessoa com quem eu me relacionava disse que eu possuía "uma
melancolia intrínseca". Essa frase foi dita em uma conversa que aconteceu
durante esse período de seis anos em que estive inativa por aqui, em um momento
que eu estava particularmente feliz com minha vida e, pelo visto, ainda assim
deixava transparecer uma tristeza corriqueira. Recordar essa interação me leva
a crer, agora, que o que sinto não se dá apenas em momentos específicos, mas se
mantém comigo. Será se essa melancolia realmente é intrínseca a mim? Será que
ela é um traço de personalidade moldada por uma das ilhas psicológicas que
sustentam o meu ser?
O problema
é que essa melancolia nem sempre é navegável, mas as vezes tira todas as minhas
forças e me deixa em um estado quase catatônico em relação aos estímulos ao meu
redor. Afeta minhas relações amorosas, familiares e de amizade, minha dedicação
profissional e meus hobbies habituais. É triste ver que estou novamente triste
como estava seis anos atrás, e como estive entre esse período também. É triste
pensar que minha vida será assim até o fim dela. Será que aprenderei a lidar
com isso em algum momento?

Não é surpresa pra quem me conhece que eu me
relaciono muito bem com a tristeza nas artes. Músicas, filmes, livros,
pinturas, videogames, quanto mais mórbidos, depressivos e sombrios, mais eu me
identifico. Representações de relacionamentos fracassados, sonhos não
realizados e contemplação constante da morte são meus temas favoritos e onde
encontro um espaço de conforto. Não me sinto sozinha quando encontro
sentimentos compartilhados com Clarice Lispector, Virgínia Woolf, Florence
Welch, Lana del Rey e tantas outras, algumas fictícias, mas que sempre retratam
bem o sentimento de não ver sentido na própria existência, de lamentar os
fracassos e esperar o pior. Posso dizer que, em alguns momentos, encontro certa
felicidade na tristeza.
Na peça Hamlet, encontra-se uma das personagens que mais me causa fascínio na vida: Ofélia. Depois que seu noivo Hamlet a rejeita e mata seu pai por engano, a moça enlouquece e, abalada pela rejeição e pelo luto, encontra seu fim ao se afogar em um rio. Shakespeare é brilhante na concepção dessa personagem e sua morte é um daqueles enigmas que atormentam a audiência. Ofélia se afogou no rio acidentalmente ou se atirou propositalmente para encerrar a própria vida? A maioria das adaptações da peça para o audiovisual retratam Ofélia como suicida. Parece o inevitável após a loucura que a assola depois de tantas tragédias. Mas o texto original de Shakespeare é ambíguo, a morte da moça não é mostrada explicitamente, apenas mencionada por outros personagens que a discutem. Uma diz que ela caiu sem querer no rio ao tentar apanhar flores para confeccionar uma guirlanda, outros declaram prontamente: ela se matou.
De qualquer forma, a ambiguidade do fim de
Ofélia é algo que me prende a atenção desde que li uma versão em romance de
Hamlet na adolescência. Afinal de contas ela se suicidou ou não? Ofélia não
tinha voz, além de ser uma personagem menor na história, ela era constantemente
controlada pelas pessoas a sua volta. Seu pai, irmão, noivo, sogra, todos a
diziam o que fazer e o que sentir. Uma marionete nas mãos de todos, sem vontade
própria. Ofélia é triste, trágica e parecida comigo em alguns aspectos. Seu
suposto suicídio é uma metáfora que Shakespeare deixou aberto a interpretações.
Na minha, seu afogamento parece ser o último (ou primeiro) ato de
autonomia da personagem. Na loucura, Ofélia se liberta. Ela não luta
contra a própria tragédia, ela a abraça e ganha o controle.
Ofélia é uma das personagens mais trágicas de Shakespeare, o que faz dela minha favorita, é claro.
Tendo sido uma pessoa que
cresceu com pouca autonomia também, Ofélia me lembra da sensação de controle
que sinto ao me agarrar a melancolia. Porque a felicidade é incerta e pode virar
tristeza, mas a tristeza é segura e não vai a lugar algum. Se acostumar a ela é
viciante e dá início ao um ciclo interminável de autossabotagem. E a
autossabotagem diz respeito ao controle, quando não se está acostumado com a
incerteza da felicidade, se procura a tragédia porque já se tem certeza do
final.
E,
apesar de tudo isso, aqui estou eu, seis anos depois, passando por uma situação
muito difícil, mas desejando que não estivesse. Mesmo acostumada a tristeza,
dessa vez não quero cultivá-la. Quero entendê-la melhor, sim, mas também quero
que ela siga seu caminho. Porque Ofélia já me mostrou o final do que a suposta
liberdade da tragédia resulta.
E mesmo que seis anos depois eu
esteja sentindo os mesmos sentimentos, devo lembrar dos gloriosos momentos de
felicidade que intercalaram esse período. Então, agora já sei que, ainda que o
ciclo se repita, é bom lembrar que ele também não dura. E isso me dá esperanças
para continuar.
P.S. Espero que o próximo post não demore mais seis anos pra sair.