domingo, 17 de setembro de 2023

Capítulo 3 - A vida infeliz

Lembrei que tinha esse blog alguns dias atrás e estive em dúvida sobre voltar a escrever nele ou abandoná-lo de vez, como todos os hobbies que não consigo cultivar por mais de três meses. Só que faz seis anos desde a minha última publicação aqui e, ao relê-la, percebi que estava enfrentando o mesmo sentimento que me fez publicar minhas últimas palavras nesse diário virtual. Acontece que seis anos é muito tempo e minha vida já mudou tanto desde meu último post, que me deixou extremamente angustiada saber que, apesar de todas essas mudanças, cá estou eu, com o mesmo sentimento de seis anos atrás. Meu primeiro pensamento foi "como posso estar sentindo a mesma coisa que minha eu passada, sendo que já mudei tanto desde então?". E então, outro pensamento me assombrou, o de que, talvez, eu não tenha mudado tanto quanto achava. 

Isso é assustador, não é? Porque mudar é evoluir, ou regredir, mas permanecer o mesmo é quase antinatural. É aquela famosa frase de Heráclito, sobre o homem não poder se banhar duas vezes no mesmo rio. Por isso essa ideia logo passou de assustadora para ridícula, é impossível eu não ter mudado. Não vou entrar no mérito de narrar tudo que aconteceu comigo nesse tempo, mas de certo eu já me considero uma versão diferente, ainda que não totalmente, da minha antiga eu. Cheguei então em duas conclusões: 1) Eu tenho uma condição que se repete ciclicamente; 2) Quando ela aparece, sinto vontade de escrever (e procurar um lugar pra escrever me fez encontrar esse lugar que eu já tinha).

Após essas duas revelações se apresentarem, estive em profunda reflexão sobre minha vida no geral, minha história, minhas memórias e tudo que me compõe. Tudo isso para tentar entender a causa dessa sensação depressiva que me assola de tempos em tempos e por que ela não mudou junto com tantos outros traços meus. Lembrei-me, então, do filme Divertidamente da Pixar, uma animação que mostra como as nossas emoções funcionam no cérebro. Nesse filme somos introduzidos a um conceito que os personagens chamam de "memórias-base", elas são responsáveis por criar ilhas que moldam os principais traços de personalidade de uma pessoa. Como uma das personagens do filme diz, esses traços de personalidade são o que fazem alguém ser esse alguém. Sabendo que o roteiro do filme foi construído junto com neurocientistas e psicólogos, eu acredito que esse conceito das ilhas que sustentam nossa personalidade realmente existe. 

Isso me leva a outra memória, de alguns anos atrás, em que a pessoa com quem eu me relacionava disse que eu possuía "uma melancolia intrínseca". Essa frase foi dita em uma conversa que aconteceu durante esse período de seis anos em que estive inativa por aqui, em um momento que eu estava particularmente feliz com minha vida e, pelo visto, ainda assim deixava transparecer uma tristeza corriqueira. Recordar essa interação me leva a crer, agora, que o que sinto não se dá apenas em momentos específicos, mas se mantém comigo. Será se essa melancolia realmente é intrínseca a mim? Será que ela é um traço de personalidade moldada por uma das ilhas psicológicas que sustentam o meu ser?

O problema é que essa melancolia nem sempre é navegável, mas as vezes tira todas as minhas forças e me deixa em um estado quase catatônico em relação aos estímulos ao meu redor. Afeta minhas relações amorosas, familiares e de amizade, minha dedicação profissional e meus hobbies habituais. É triste ver que estou novamente triste como estava seis anos atrás, e como estive entre esse período também. É triste pensar que minha vida será assim até o fim dela. Será que aprenderei a lidar com isso em algum momento? 



Não é surpresa pra quem me conhece que eu me relaciono muito bem com a tristeza nas artes. Músicas, filmes, livros, pinturas, videogames, quanto mais mórbidos, depressivos e sombrios, mais eu me identifico. Representações de relacionamentos fracassados, sonhos não realizados e contemplação constante da morte são meus temas favoritos e onde encontro um espaço de conforto. Não me sinto sozinha quando encontro sentimentos compartilhados com Clarice Lispector, Virgínia Woolf, Florence Welch, Lana del Rey e tantas outras, algumas fictícias, mas que sempre retratam bem o sentimento de não ver sentido na própria existência, de lamentar os fracassos e esperar o pior. Posso dizer que, em alguns momentos, encontro certa felicidade na tristeza.

        Na peça Hamlet, encontra-se uma das personagens que mais me causa fascínio na vida: Ofélia. Depois que seu noivo Hamlet a rejeita e mata seu pai por engano, a moça enlouquece e, abalada pela rejeição e pelo luto, encontra seu fim ao se afogar em um rio. Shakespeare é brilhante na concepção dessa personagem e sua morte é um daqueles enigmas que atormentam a audiência. Ofélia se afogou no rio acidentalmente ou se atirou propositalmente para encerrar a própria vida? A maioria das adaptações da peça para o audiovisual retratam Ofélia como suicida. Parece o inevitável após a loucura que a assola depois de tantas tragédias. Mas o texto original de Shakespeare é ambíguo, a morte da moça não é mostrada explicitamente, apenas mencionada por outros personagens que a discutem. Uma diz que ela caiu sem querer no rio ao tentar apanhar flores para confeccionar uma guirlanda, outros declaram prontamente: ela se matou. 

De qualquer forma, a ambiguidade do fim de Ofélia é algo que me prende a atenção desde que li uma versão em romance de Hamlet na adolescência. Afinal de contas ela se suicidou ou não? Ofélia não tinha voz, além de ser uma personagem menor na história, ela era constantemente controlada pelas pessoas a sua volta. Seu pai, irmão, noivo, sogra, todos a diziam o que fazer e o que sentir. Uma marionete nas mãos de todos, sem vontade própria. Ofélia é triste, trágica e parecida comigo em alguns aspectos. Seu suposto suicídio é uma metáfora que Shakespeare deixou aberto a interpretações. Na minha, seu afogamento parece ser o último (ou primeiro) ato de autonomia da personagem. Na loucura, Ofélia se liberta. Ela não luta contra a própria tragédia, ela a abraça e ganha o controle.


Ofélia é uma das personagens mais trágicas de Shakespeare, o que faz dela minha favorita, é claro.

        Tendo sido uma pessoa que cresceu com pouca autonomia também, Ofélia me lembra da sensação de controle que sinto ao me agarrar a melancolia. Porque a felicidade é incerta e pode virar tristeza, mas a tristeza é segura e não vai a lugar algum. Se acostumar a ela é viciante e dá início ao um ciclo interminável de autossabotagem. E a autossabotagem diz respeito ao controle, quando não se está acostumado com a incerteza da felicidade, se procura a tragédia porque já se tem certeza do final.

            E, apesar de tudo isso, aqui estou eu, seis anos depois, passando por uma situação muito difícil, mas desejando que não estivesse. Mesmo acostumada a tristeza, dessa vez não quero cultivá-la. Quero entendê-la melhor, sim, mas também quero que ela siga seu caminho. Porque Ofélia já me mostrou o final do que a suposta liberdade da tragédia resulta.

E mesmo que seis anos depois eu esteja sentindo os mesmos sentimentos, devo lembrar dos gloriosos momentos de felicidade que intercalaram esse período. Então, agora já sei que, ainda que o ciclo se repita, é bom lembrar que ele também não dura. E isso me dá esperanças para continuar.

 

P.S. Espero que o próximo post não demore mais seis anos pra sair.

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